A Criação Ortonímica de Fernando Pessoa

Publicado em 22/04/2003

A habilidade do poeta manifesta-se no poder de síntese; há todo um discurso subentendido sobre o ser feliz, a memória, o presente, o passado, o poder seletivo do tempo; há enfim, toda uma vivência pessoana sintetizada em: E eu era feliz? Não sei:/ (eu) Fui-o (feliz) outrora (na infância) agora (hoje).

A metafísica, o absoluto transcendente aos homens, em Pessoa, parece quase sempre algo residual que só se depreende das suas poesias (e ensaios) pelo fato de elas ficarem imprecisas quanto a qualquer perspectiva ou projeto histórico humano; e o sentido do mistério é, em Pessoa, quase inteiramente movediço, dialéctico, alternando, se não coexistindo, com a própria lucidez, é a sombra inevitavelmente projetada pela própria luz pensante. Pessoa sente-se muito consciente, altamente consciente, como poeta; simplesmente, os estados poéticos de consciência são, como todos os outros (ou mais que todos os outros), autocontraditórios e instáveis, pressupondo por isso a consciência de se ser sempre, de algum modo, inconsciente. Tal dialéctica da consciência-inconsciência percorre toda a poesia de Pessoa.

Ela canta, pobre ceifeira,

Julgando-se feliz talvez;

Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia

De alegre e anônima viuvez, 

O texto apresenta o ponto de vista da primeira pessoa do singular, um EU analítico, racional, que observa, inicialmente, a figura de uma "ceifeira" (mulher que trabalha na colheita), tratada em terceira pessoa ("Ela canta, pobre ceifeira"). É interessante notar que a imagem da ceifeira é alegre, feliz, anônima, plenamente integrada…

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